Entrevista: Antonio Calloni
blog da Bertrand do Brasil, 10/08/2005

Paralelamente a uma carreira de 25 anos como ator em grandes produções de teatro, cinema e televisão, Antonio Calloni sempre manteve uma estreita ligação com os livros. Porém, apesar de escrever desde os treze anos de idade, só decidiu tornar pública a sua face de escritor em 1999. Com a edição do volume de poemas Os Infantes de Dezembro, Calloni foi aclamado como uma grande revelação literária. Hoje, lançando o seu quarto livro O Sorriso de Serapião (e Outras Gargalhadas), continua cultivando seus dois talentos com igual empenho. “O trabalho como escritor é mais despudorado, exposto e sem truques”, compara o autor. “É mais fácil uma pessoa me conhecer através da minha escrita do que através do meu trabalho de ator. A alma do ator é o seu corpo. O corpo do escritor é a sua alma. O estímulo é recíproco e inevitável, tanto o ator quanto o escritor procuram pintar a vida sem um contorno preciso e com todas as cores possíveis.”

Como O Sorriso de Serapião (e Outras Gargalhadas) foi montado? O livro é uma compilação de contos ou as histórias foram se moldando em torno de um certo conceito?
Os contos, as narrativas, os fragmentos, ou ainda, as prosas poéticas que formam o livro são de diferentes “safras”. Alguns contos têm quinze anos de trabalho e outros foram escritos quinze dias antes de apresentar o livro à editora. Todos, sem exceção, foram escritos e reescritos. Por exemplo: o conto “A gargalhada de Ariosto” (iniciado em 1996 e terminado em 2003) aparece citado no meu livro Amanhã Eu Vou Dançar. Não existe no livro um conceito planejado, estruturado. Existe um forte desejo de descarnar a vida para poder ver o que existe dentro dela, como uma criança que desmonta ou esquarteja um carrinho para tentar ver como funciona o mecanismo.

Ao contrário do que o título é capaz de sugerir, O Sorriso de Serapião (e Outras Gargalhadas) não é exatamente um livro engraçado. Os risos que podem surgir ao decorrer da leitura dos contos são nervosos, dolorosos. Você acha que a diferença entre a dor e o humor é apenas uma questão de ponto de vista?
O humor é uma ferramenta poderosa e muito versátil. Pode ser corrosivo, poético, patético... pode causar dor também. É possível que a dor e o humor caminhem lado a lado.

Os personagens do livro (em especial no conto "Uma guerrilha") são muito marcantes e peculiares. De onde eles nasceram?
São seres do limite. São maravilhosos, espetaculares, amedrontados, viris, frágeis e desenhados com tintas muito fortes. Querem ser amigos da morte e do seu poder. O medo da morte faz com que as pessoas criem coisas maravilhosas. O mesmo medo faz com que as pessoas se matem umas as outras. Os personagens nasceram do pavor, da guerra, das bombas e do desejo de ser eterno. A inconformidade do ser humano em relação à morte é atemporal. Também acho que morrer é de muito mau gosto.

Quem é Serapião? Em seu destino trágico e patético, ele pode ser encarado como uma versão masculina e pós-moderna da Macabéa, personagem criada por Clarice Lispector em A hora da estrela?
Serapião pode até ser um parente muito distante de Macabéa. Eu vejo o homem Serapião como uma escultura inacabada feita com palavras, idéias, poesia e literatura. O escritor também é personagem, assim como a própria escrita. Serapião está à procura do seu grande amor, o escritor está à procura do movimento constante para ver se consegue entender alguma coisa, e a escrita, superior a tudo, já achou a resposta e não a revela a ninguém. Nos oferece apenas seu perene sorriso. Serapião é uma história de amor, de fé e de insistência.

Seus contos tratam do mundo real, mas são marcados por elementos grotescos e fantásticos. Ou seriam o grotesco e o fantástico meros sintomas de uma realidade examinada em seus mínimos detalhes?
É possível, muitas vezes, ver o grotesco da vida sem qualquer lente de aumento. Mesmo sem um exame mais detalhado o grotesco pode saltar facilmente aos olhos. Carnes humanas ensangüentadas se espalhando pelos ares é grotesco. Nosso escândalo político atual é grotesco. A violência é grotesca. O sexo pode ser grotesco. O amor, a paixão, a alegria, a fé. Acredito que o elemento fantástico tem como fonte o mesmo desejo de eternidade, de uma saída mágica, de um poder que nós queremos ter e que infelizmente não temos.

Você tem publicados um livro de poemas, uma novela e duas coletâneas de contos. Como se dá esse passeio através de diversos gêneros da escrita? Em qual deles você se sente mais confortável?
Acho que minha prosa tem muito de poesia e vice-versa. A poesia é uma arte mais sofisticada, a pedra só pode ser cortada com uma lâmina de diamante. Na prosa é possível usar um cinzel. Não vejo conforto, vejo estímulo. A poesia e a prosa me estimulam igualmente.

Na sua visão, quais são as diferenças e as semelhanças entre O Sorriso de Serapião (e Outras Gargalhadas) e suas obras anteriores?
Só consigo ver as semelhanças. Alguém já disse que o escritor escreve sempre a mesma coisa; também acredito nisso. Vejo em todos os meus livros a curiosidade, a perplexidade, o amor, o sexo, a provocação e o desejo de movimento, mesmo que este seja a esmo.

Como e quando teve início sua paixão pela literatura? Quais são suas maiores influências e referências literárias?
Aos treze anos de idade, depois de uma viagem à Itália, escrevi meu primeiro poema, em italiano, em homenagem à vila onde meu pai nasceu, Ponte San Pietro. Não parei mais. Quanto às influências: Manuel Bandeira e Manoel de Barros, poesia; Clarice Lispector e Guimarães Rosa, conto; Graciliano Ramos, ficção.

Quais são os pontos em comum entre os trabalhos do Calloni escritor e do Calloni ator? De que forma essas duas artes se relacionam?
O trabalho como escritor é mais despudorado, exposto e sem truques. É mais fácil uma pessoa me conhecer através da minha escrita do que através do meu trabalho de ator. A alma do ator é o seu corpo. O corpo do escritor é a sua alma. O estímulo é recíproco e inevitável, tanto o ator quanto o escritor procuram pintar a vida sem um contorno preciso e com todas as cores possíveis.

Sendo um ator consagrado e muito popular, nunca houve um certo medo de ser rotulado pela crítica preconceituosa como simplesmente "um ator que escreve"? Como você lida com isso?
Nunca fui vítima de nenhum tipo de preconceito. Vejo o meu trabalho como escritor evoluindo muito bem e estou muito feliz com o resultado do Serapião. Espero que as pessoas comprem o livro, leiam e gostem.