Dois irmãos

Paixão, memória, tempo presente, desespero criativo, alegria. Alegria!!! O prazer do faz de conta infantil. Ator. Ser criança, esquecer da alta literatura, da música clássica, de Botticelli, e deixar que essas “coisas” passeiem livremente por nossa carne, sem pensar nelas... esquecer para sentir prazer. Talvez... Dois Irmãos, história “quase” inventada pelo infante que habita Hatoum, é repleta da mais poderosa paixão. Aquela que mata e gera vida. E com essa mesma paixão avassaladora, a trupe dos Dois Irmãos entra num Galpão enfeitiçado e começa a moldar a história de uma família de imigrantes libaneses que tenta a vida em Manaus. Imigrantes que constroem o Brasil. Um país que melhora e depois piora. Um país que piora e depois melhora. Um país que melhora e piora ao mesmo tempo, reforçando a ideia de que a história não é, e jamais será linear. Não é linear o gigante amor que Halim, o patriarca da família, sente por Zana, sua mulher. É um amor maior do que as horas. Filhos são uma ameaça. Os gêmeos, Yaqub e Omar, encarnação clássica do equilíbrio e do caos, provocam o amor, o ciúme e a sexualidade, sempre num ambiente pleno de música, festa, surras, sexo e beijos.

No processo de criação, pudemos sentir o calor dessa família, maravilhosamente conduzidos pelo “músico” Luiz Fernando Carvalho, através de exercícios de corpo, improvisações, aulas de dança, de culinária, prosódia e palestras. Um elenco que se uniu pelo afeto e pela admiração que duram até hoje, um ano e meio após a conclusão das gravações, e que promete durar para sempre. Aconteceu uma mágica, se boa ou não, cabe ao público decidir. Da nossa parte, vale dizer que tentamos da melhor maneira possível, contar um pouco da história desse nosso país tão vigoroso e exuberante, dessa família tão vigorosa e exuberante.

Trago na memória o prazer... o prazer de ir para o ensaio e experimentar a vida, o fragmento, o discurso recortado, a sequencia de lógica suspeita, o bom inferno e algum céu. Sempre mais poesia do que prosa, e, quando prosa, poesia também. Um ambiente de diversão e descobertas. O galpão de ensaio, dentro do famoso Projac, é um caldeirão místico e despudorado, lugar de doidos. Difícil definir claramente uma obra que, como toda a grande obra, fala da mesma coisa: da vida. Dostoiévski, Clarisse Lispector, Miró, Vivaldi... farinha do mesmo saco, falando da mesma coisa - não consigo ver diferença; por incompetência ou por uma doentia capacidade de sonhar, só vejo semelhanças. Assim é a familiar e semelhante Dois Irmãos: amor incondicional de Halim pelo prazer, pela esposa. A paixão, a beleza e a força de Zana e seu amor tonelar pelo marido, pelos filhos e pela vida. O mistério da filha Rania, e a vida e a morte encarnadas nos gêmeos Yaqub e Omar. Uma obra que provoca, emociona e faz viver. Faz vida. Faz poesia. Faz arte. Evoé!!!

Antonio Calloni
25/11/2016