27/07/2012

Istambul veio comigo ao Brasil.

Ser o ponto de vista é inevitável, meu corpo e minha alma são sempre os mesmos, "mudando" em si mesmo com uma impensada relação com a vida. E isso não tem nada a ver com egocentrismo. Tem a ver com solidão. Minha pele é a mesma em qualquer lugar do mundo; minha pequena loucura, também. A diferença é externa, e, graças ao bom Deus, atua no meu humor. A existência precede mesmo a essência? Tenho as minhas dúvidas, mas continuo me divertindo. O mundo vem a nós com suas mesquitas, igrejas, mares, rios, pontes... Somos portadores eternos das nossas horas.

Pego um barco e vou para a ilha de Büyükada, uma das Princes' Islands. Mergulho no mar de Marmara, dou restos de peixe para as gaivotas, tomo uma garrafa de vinho branco e turco e brilhante e inebriante, e convivo de maneira harmoniosa com o mundo impreciso da Turquia enquanto a precisão do meu personagem Mustafa toma conta de parte do meu corpo.

O resultado do sol no meu rosto dá um certo trabalho à maquiadora no dia seguinte. Mehmet, o assistente turco de Marlene, não fala português, nem inglês e também não faz absolutamente nada, limita-se a sorrir, a olhar, a sumir, para depois voltar ao set e continuar sem fazer absolutamente nada. Minto. Uma vez Mehmet pegou um pente e entregou-o gentilmente à sua chefe que, fica constantemente irada com o risonho e batiza o pobre de Mimete, porque através da baixaria a memorização do nome torna-se mais fácil. "Vou preparar minha galhada e partir para cima desse moleque, porque eu sou do caratê", diz Rubinho, o segundo maquiador, também irritado com o obsoleto turco. Apesar do assistente (para sorte da produção), a grande maioria da equipe turca trabalha muito e bem.

Todos prontos, depois de termos acordado às 4h30 da manhã, vamos gravar no Palácio Topkapi (sem o pingo no i). Vamos gravar no Palácio Küçüksu (a casa do meu megamilionário personagem). Vamos gravar navegando pelo Bósforo no barco de 54 pés do Mustafa. Vamos gravar no Grand Bazar. Vamos gravar no helicóptero. Vamos gravar na fortaleza da Europa usada como base para a tomada de Constantinopla. Vamos gravar na Ásia e na Europa. Vamos gravar a preocupação do personagem com o desejo da filha de conhecer os pais biológicos no Brasil. Vamos gravar na ponte de Gálata repleta de pescadores.

Vamos gravar.
Vamos gravar.
Vamos gravar.

Sinto orgulho da minha fé cênica. Acredito. Acredito em tudo. A Istambul do Projac e a Istambul da Turquia são um espelho insano e normal. Fé. Tertuliano, teólogo e pai da igreja, dizia sobre os mistérios da fé: "Credo quia absurdum est" (Creio porque é absurdo). Antonio, ator, escritor e pai de Pedro, diz sobre os mistérios da fé (e do faz de conta): Creio por ser a melhor alternativa. É preciso uma certa coragem para crer; sou ator, invento a minha crença, minha coragem e minha fé dentro do meu espaço interno abastecido por várias paisagens e rostos. Além da baixa filosofia, preciso acreditar para receber meu salário no final do mês, qual é?! Ator, espírito volátil de engraçado desespero. Fingidor, o mesmo do Pessoa. E, quando finge, é matemático, concreto, assustadoramente real. Em Istambul ou entre fachadas cenográficas. Comendo Lokum ou arroz e feijão. Ator. Adormecia no quarto do hotel assistindo às novelas turcas, ouvindo suas falas uralo-altaicas, vendo trejeitos, tons, tentando apreender... Nas ruas, a mesma coisa. Sem adormecer. "Não se dorme em Euro", disse-me uma vez a sábia Glória Maria. Viajar, aproveitar, acordar cedo e andar. Observar sem fazer força. Ator. Comprar um relógio Franck Muller no Istinye Park e exercer plenamente a poética do desnecessário (mais uma vez), e o fascínio pelas horas mecânicas, de precioso design, amarradas ao pulso. Ator. A pechincha no Grand Bazar. Um tesbih - adereço parecido com um terço usado pelos muçulmanos para rezar ou para aliviar o estresse - com preço de saída de 110 liras turcas comprado por apenas 30. O que significa que poderia ter sido 5, ou menos. Liras turcas. Ator. Ivory, diz o vendedor. Não acredito. Acerto, era osso de carneiro. A castanha assada e o milho queimado no carrinho de rua. O trânsito frenético. A Arca de Noé no fundo do Bósforo. Taxistas malandros. Povo vigoroso e amoroso. O centro do mundo. Ator. O calor monstro. O sol monstro. Minha família comigo durante três dias em Istambul para depois prosseguir viagem. Minha família na Capadócia, em Izmir, em Troia, em Pérgamo, em Dardanelos, em Pamukkale. A visita à casa da Virgem Maria. A medalha benta pendurada no meu chaveiro para abençoar a vida. Meu alumbramento com o Palácio Dolmabahçe. Estátuas de Atatürk - o homem que proclamou a república e modernizou a bela Turquia, o pai dos turcos - por toda parte. O escritório no apartamento do meu Leblon. Aqui. No dia 01/08/2012. Inapreensível agora. Fotos armazenadas no computador, na parede, memórias em HDs externos. Escolhendo cadeiras de Sergio Rodrigues para a futura reforma na sala. Vida. Ator. Turquia. Brasil.

Estou à espera - como Godot e como contratado da Rede Globo - do telefonema da produção avisando do início das gravações no estúdio e na estonteante cidade cenográfica.

A seguir, cenas dos próximos capítulos.

Salve Jorge!