Amanhã eu vou dançar
Iara Nascimento
Quando um não-iniciado nas letras resolve escrever um livro e faz o anuncio é um “Deus nos acuda”. Imaginamos mais uma daquelas autobiografias promocionais “sem pé nem cabeça” ou aqueles livros de auto-ajuda que não ajudam nem o bolso do autor. Mas grata surpresa quando ocorre o contrário. Tudo é feito sem muito alarde e o que se vem a ler é pura ficção.
Antônio Calloni, renomado ator de teatro e “global” também, se inclui no segundo caso. Ele gosta de se arriscar na literatura. Este é seu terceiro livro, já havia lançado um de poesia e outro de contos. Amanhã eu vou dançar é um romance ou como Calloni o define uma novela de amor. Escrito de forma clara e objetiva é um livro que não oferece dificuldade. Os diálogos rápidos e envolventes tornam o livro leve o suficiente para leitura em um dia só.
O autor escreve sobre um casal, Jasbi e Fêula, contando o inicio do relacionamento deste. Trata-se da união de dois solitários, que estavam beirando a loucura. Mas o leitor só perceberá esta fragilidade no final do livro quando os segredos de ambos forem revelados. Poderia ser apenas mais uma história de amor se não fosse uma “falha” do autor. Ele permeia o texto com suas preferências literárias e seus artistas preferidos. A única coisa de errado que tem nisso é que nem todo mundo vai relacionar estas coisas ao texto(não que esta seja a intenção do autor) por não conhecer as obras e autores citados ou se lembrará do principal ator mencionado, John Wayne.
Mas é legal perceber, por exemplo, que a descrição do prédio onde Jasbi vai morar lembra a descrição dos diferentes infernos de Dante em O inferno de Dante. Ou você pode se pegar pensando nas angústias espirituais causadas durante a leitura de Crime e Castigo e O Estrangeiro e você poderi ir mais longe acrescentando outras possíveis leituras que despertassem o mesmo sentimento. No caso, posso citar O Perfume e Metamorfose com o conto Artista da Fome. Todos eles levantam questões sobre o espírito humano e as suas mais cruéis e instintivas manifestações. Tudo por causa desta frase da personagem Potestade 1 (que se refere a regimento de anjos): ”Se tu leres apenas Crime e Castigo e O Estrangeiro, com certeza vosso espírito nunca mais será o mesmo”. E quanto a John Wayne(aquele dos antigos filmes de faroeste) sua função é reforçar o lado machista de Jasbi, por isso , ele só aparece na hora de dar uma força com Fêula. Tudo porque nos filmes que fazia, ele era aquele anti-héroi que arrasava o coração da mocinha.
Outro exemplo interessante da possibilidade de texto para se relembrar ou conhecer está relacionado a uma problema de Fêula. Ela por um acidente da natureza sofre de um mau cheiro bestial que não é persistente, mas surge na hora em que bem entende, ou seja, nas mais impróprias possíveis. No romance Como Água para Chocolate, mesmo que por circunstâncias certas, existe uma personagem que também sofre e morre deste problema. E uma coisa engraçada, sempre que falo deste livro me lembro de Cem Anos de Solidão, pois ambos abordam uma “realidade fantástica” capaz de nos proporcionar os mais diversos sentimentos, transitando da alegria a tristeza.
Amanhã eu vou Dançar é um livro interessante exatamente por isso. Ele é capaz de remeter o leitor a alguma experiência já vivida. E o mais legal, a “falha” pode ser superada. O livro é escrito de uma forma tão singela que não importa se o leitor tem um bagagem literária muito vasta ou não, basta degustar os detalhes. As cenas são de uma visibilidade quase teatral e descrevem com otimismo os conflitos de um novo casal. Calloni conta coisa do cotidiano. E apresenta personagens alegres apesar das mazelas que enfrentam. Não a nada mais semelhante a isso que a vida do próprio leitor. Todos já podem ter passado pelas situações descritas por ele. Além disso, a obra é repleta de cenas sensuais e eróticas e estas possuem um vocabulário peculiar( aqui você pode se remeter à literatura nacional com O Cortiço). Os discursos são corriqueiros e os mais simples possíveis. É impossível para qualquer leitor não se lembrar de alguma passagem da vida.
Enfim, é uma boa leitura. Apenas uma coisa me deixou intrigada. Por que uma caixa de ovos na capa? Quer coisa mais simples? Tudo bem que Fêula era cozinheira, mas... . Ela tem também uns corações que só são percebidos de perto. Realmente temos que estar perto para nos conhecermos, crus, sem disfarces. Mas e aquela figura de Davi? Bom, a descrição de Jasbi é de uma perfeição completa. Agora por que ele está com os lábios cerrados... é uma capa bem estranha. Será mesmo? 23/05/2004
publicado no site Poppy Corn
em 23 de maio de 2004