“Sirvamos um chá bem quente a Antonio Calloni a fim de que possa ficar mais tempo com a gente.”
 

por Paulo Ruch

O personagem de Antonio Calloni, Mustafa, em “Salve Jorge”, novela das 21h da Rede Globo escrita por Gloria Perez, como o rico comerciante turco de suntuosos tapetes que é, seguindo à risca as antigas tradições de seu país, costuma dizer aos seus interlocutores que deve-se servir em loja chá bem quente aos fregueses para que possam permanecer largo tempo no estabelecimento, e comprar mais tapeçarias. Quando vejo Mustafa, uma das melhores criações da autora para a produção atual, lembro-me de papel defendido por José Wilker na primeira fase de “Renascer”, em que usava como bordão: “É justo, é muito justo, é justíssimo.” Pois desta forma contextualizo a personalidade do pai adotivo (e nem por isso menos pai) de Aisha (Dani Moreno) na trama das 21h da Rede Globo que está chegando ao fim. Um homem justo, muito justo, justíssimo. Em vários momentos do folhetim, o ex-marido de Berna (Zezé Polessa) revelou esta nobre faceta, que impinge dignidade e honradez à enredo que discute questões de dura aceitação pela sociedade civil. No tocante à busca infatigável da amiga de Zoe (Julia Mendes) por suas raízes biológicas, sempre apoiou-a, por mais que de algum modo isto machucasse-o. Contudo quem justo é sobrepuja dor pessoal. Hoje move moinhos de vento para estreitar a relação afetiva de quem com tanto amor criara e a família legítima. Está ao largo do preconceito socioeconomico. A riqueza material não obscurece a riqueza da alma. Ao deparar-se com situação degradante em que encontrava-se Morena (Nanda Costa), vítima do tráfico humano, foi capaz de “comprá-la” para que pudesse escapar do calvário. Alimentou-a, deu-lhe roupas e guarida. Alguns poderiam argumentar que o que cometera fora errado. Entretanto, o que é o errado diante da multiplicação deste? Quando o assunto é Berna, a configuração analítica é complicada. A prima de Deborah (Antonia Frering) engendrou repertório de crimes, abusando de mentiras, omissões, furtos, e cedendo a chantagens para acobertá-los. O casamento de anos com a elegante esposa não demoveu-o de pôr em prática sua sede de justiça. Berna sofrera forte repreensão e colocada fora contra a parede todas as vezes em que suas práticas penais eram desveladas pelo marido. Antonio Calloni é daqueles intérpretes que dão credibilidade e prestígio a quaisquer produções para as quais é escalado, e em “Salve Jorge” não está sendo diferente. Quantas vezes não percebemos seus faiscantes olhos azuis marejados de lágrimas com real emoção? Privilegiados são os artistas que com ele dividem a cena. Antonio estreou com garbo na minissérie de Gilberto Braga, “Anos Dourados”, com o seu inesquecível Claudionor. E a partir daí, em desenfreada evolução, Calloni, que também é respeitado escritor e poeta, construiu sólida carreira pontuada por personagens indiscutivelmente marcantes. Dentre tantas novelas de que participou, destaquemos o William de “O Dono do Mundo”, o cineasta Milton Dumont de “Zazá”, o mitológico Bartolo de “Terra Nostra”, o Mohamed de “O Clone” (inicia-se aí frutífera parceria com Gloria Perez), o divertido César de “Caminho das Índias”, e o romântico e severo contraventor Natalino de “O Astro”. Um elemento objeto de interesse em sua jornada artística é o fato de ter personificado, não raro com verossimilhança, papéis históricos, como o abolicionista Lopes Trovão de “Chiquinha Gonzaga”, o pioneiro das telecomunicações Assis Chateaubriand em “Um Só Coração”, o poeta modernista Augusto Frederico Schmidt, afora o médium Zé Arigó. Sobressaiu-se em diversos episódios de “A Vida Como Ela É”. Emprestou potencial à adaptação de obra de Machado de Assis em “O Alienista”, na “Terça Nobre”. Não faltaram-lhe humorísticos, seriados, infantil e especiais. Testemunhamos seu alvo rosto em minisséries relevantes como “Decadência”, “Os Maias” e “Amazônia – De Galvez a Chico Mendes”. Seguiu a orientação de cineastas em filmes como “Policarpo Quaresma, Herói do Brasil”, “Outras Estórias”, “A Paixão de Jacobina”, “Poeta das Sete Faces”, “Anjos do Sol” (com o qual recebeu o prêmio ACIE – Associação dos Correspondentes de Imprensa Estrangeira no Brasil) e “Faroeste Caboclo”. Dublou Garfield. Retomando o tema láureas, fora agraciado com o Molière pelo Karl Marx do espetáculo “A Secreta Obscenidade de Cada Dia de Marco Antonio de la Parra”. E como autor revelação presentearam-no com o Prêmio Jorge de Lima pelo livro de poemas “Infantes de Dezembro”. Entre coxias, urdimentos e proscênios desbravou terrenos de Tchekhov, Jorge Amado, Sam Shepard, Harold Pinter, Tom Stoppard, Eugene O’Neil e Milan Kundera. Antonio Calloni é generoso e magnânimo com o público e as Artes, deixando por onde quer que passe marcas, vestígios e impressões de sua fonte inesgotável de talento nato. São por esses motivos que sugeri-lhes que sirvamos um chá bem quente a Antonio Calloni a fim de que fique mais tempo com a gente. Nem precisa ser o chá das 5, pode ser o das 18, 19, 21 ou 23h.