Um olhar cru sobre a miséria humana
 

MARIA LUTTERBACH

O nome do novo livro de Antonio Calloni é “O Sorriso de Serapião e outras Gargalhadas”, mas não se engane. Tanto o sorriso quanto as gargalhadas no título são, no mínimo, agridoces.

O autor mostra, nos 12 contos reunidos, um olhar afiado e lírico que, segundo ele, já se fazia entrever nos seus primeiros três livros – Calloni estreou com a coletânea de poemas “Os Infantes de Dezembro” (1999), lançou em seguida o livro de contos “A Ilha de Sagitário” (2000) e, em 2002, publicou a novela “Amanhã Eu Vou Dançar”.

Apesar de ter passeado por gêneros tão diversos, Calloni consegue identificar unidade na sua trajetória como autor.

“Alguém já disso isso: os escritores sempre escrevem a mesma coisa. E eu acredito nisso. Escrevemos com diferentes nuances, às vezes privilegiando uma situação, um personagem, um sentimento, mas no fundo você sempre escreve a mesma coisa, e por esse prisma, os personagens têm muito em comum entre eles. A grande maioria dos meus personagens tem o meu desejo de, como escritor, tentar compreender a vida desesperadamente, tentar descarnar a vida para ver o que tem dentro. É como uma criança que desmonta um carrinho para ver como ele funciona. No fundo, é ir em busca do mecanismo da vida, que a gente acaba nunca sabendo. É essa tentativa de compreender a vida que deixa a gente sempre em movimento, sempre ativo”, diz.

O “grotesco familiar” percebido nos contos do escritor por Marília Librandi Rocha, no prefácio, se espalham por temas que, à primeira vista, aparecem infantis, mas quase sempre se desvelam sob uma ótica crua a respeito da miséria velada que permeia as relações e as mazelas cotidianas.

“Não é um livro de humor, as gargalhadas estão presentes nele, mas são gargalhadas que, apesar de às vezes até terem humor, são doloridas, poéticas, mas não aquela gargalhada explosiva que a gente está acostumado a ver”, avisa Calloni.

Apesar de terem sido escritos em épocas distintas – alguns há cerca de dez anos e outros quando faltavam poucos dias para o autor entregar o livro à editora, os contos de “O Sorriso de Serapião” estão reunidos agora porque habitam todos o mesmo universo lúdico:

“O que me levou a juntar esses contos foi que eles têm uma unidade. Como venho trabalhando neles ao longo desse tempo, estão sempre atualizados. Existe uma coisa meio inacabada nos personagens, que é algo que me atrai muito. Enxergo todos como uma grande escultura inacabada, que é como a vida da gente, a gente vai tentado sempre terminar essa escultura, mas sempre tem coisas a serem feitas, a coisa não termina”.

Infância

Elemento recorrente nos livros de Calloni, a infância volta a aparecer em “O Sorriso de Serapião” em vários contos. O universo de descobertas e a crueldade ainda não lapidada estão lá, assim como os medos e angústias pueris:

“A infância é uma coisa muito presente no ser humano de um modo geral, sendo ele artista ou não. É uma fase muito marcante, rica, fantasiosa, de descobertas e acho que, principalmente para os artistas, esse universo onírico infantil é material muito rico”.

Calloni afirma que o ator devia atuar até os dez anos de idade e depois “virar adulto, ser médico ou engenheiro”. “E isso vale para o escritor também. Mas não acontece, a gente, graças a Deus, tem esse complexo de Peter Pan, que é um manancial muito grande”, observa.

Analisando sua própria obra e a maneira como suas experiências se espalham ainda que involuntariamente entre os textos, Calloni sai com uma definição sobre sua literatura:

“É uma invenção autobiográfica. Algumas coisas realmente aconteceram, outras aconteceram e estão deformadas e algumas coisas eu só acho que aconteceram”.

AGENDA – “O Sorriso de Serapião e outras Gargalhadas”, de Antonio Calloni, Bertrand Brasil, 109 págs., R$ 25.

publicado no jornal O tempo
em 19 de agosto de 2005