Esculpia escaravelhos
O bom ator Calloni peca por brincar com citações em sua primeira novela literária
Cecília Costa
Amanhã eu vou dançar, de Antonio Calloni. Editora Bertrand Brasil, 124 páginas. R$ 19
Para embrenhar-se na floresta de símbolos do ator Antonio Calloni, sua novela "Amanhã eu vou dançar", é preciso fechar o nariz. E corajosamente seguir em frente. Haverá dádivas no caminho. Mesmo nos deixando entontecidos pelo nauseabundo cheiro de Fêula, a protagonista - uma cozinheira de coxinhas de galinha que quando suava exalava o odor de mil íncubos - Calloni é dono de narrativa surpreendente, na qual costura diálogos inteligentes com descrições de astuto observador. Doa-nos ainda uma pitada de realismo mágico, na qual adiciona algo que costuma faltar a muitos escritores: ironia. Nada como uma ironia perversa para deixar o leitor com a atenção acordada, presa às páginas, do começo ao fim do livro.
Graça, leveza e o odor criado por Jonathan Swift
Mas, é bom avisar de novo, a travessia é contraditória: alegre e árdua. Sentimo-nos presos à teia montada pelo temerário e muitas vezes sensível escritor. Com vontade de sair, mas sem poder sair. Não há jeito. Para perceber essas qualidades, que polvilham a trama de graça, leveza e riso, o leitor terá que suportar os engulhos que o cheiro de Fêula lhe causa, principalmente quando o amante de Fêula, o gigante Jasbi, escultor de escaravelhos e baratas, entra em detalhes sobre as características odoríferas de sua amada, próximas a miasmas de esgoto, dizendo ser de uma "fetidez que se assemelhava ao cheiro de Dante por ocasião da visita ao novo círculo do inferno, o cheiro do grande demônio".
Assim, fica sendo quase que implausível uma história de amor com a ruiva cozinheira de pernas perfeitas, nádegas boas para mordidas e olhos verdes. Implausível para nós, leitores, porque Calloni e Jasbi provam ser mais do que plausível, já que o romance acabará com uma tórrida transa no meio do lixo, onde o cheiro de Fêula se perderá ou se achará. Haveria outras soluções, como Jasbi ter uma obstrução nasal, ser perfumado como o Éden, o que anularia o fedor, ou cheirar tão mal quanto, sendo carne putrefata da mesma carne. Mas a escolha de Calloni foi pela complacência de Jasbi, prova da força de seu cavalheiresco amor. Chega a convencer...tamanha a atávica atração entre os dois enamorados. Com o cheiro ou sem o cheiro da Besta, um louco amor é sempre um louco amor.
Também é muito boa a saída encontrada pelo escritor para a história fantasmagórica do filho que nunca aparece. Fêula teria um filho com o demônio maníaco por autorama? Dá medo. Cria suspense. Ao final se verá que o filho foi mais uma criação da mente brincalhona de Calloni.(...)
publicado no suplemento Prosa e verso do jornal O Globo
em 15 de fevereiro de 2003